segunda-feira, 11 de abril de 2016

21 poemas para o Dia Mundial da Poesia

Nuno Costa Santos - Observador - 21 de Março de 2016




Contas certas: são 21 poemas porque é a 21 de março que se celebra a poesia. Outros tantos poetas escolheram os seus textos favoritos e explicam porquê.






Escolhas livres feitas por poetas das mais diferentes vocações e dos mais variados apetites. Cada instinto perseguiu um registo. Há quem, na sua escolha, pretenda fixar em arquitectura literária superior a fugacidade da vida, há quem, também se fixando nesse desgaste, aproveite para a festejar (Ferreira Gullar, evocado pelo brasileiro Antonio Cicero), há quem se sinta confrontado por um poema-soco ou por um poema que, para falar de amor, traz a sombra da morte. Ou ainda por um poema que despoja o homem de pulsões que o diminuem.
São também convocados poemas (como o de Lawrence Ferlinghetti, escolhido por Tiago Gomes) que celebram o gosto perigoso em viver e outros que também relevam os aspectos técnicos – aqueles que, se bem cozinhados, conseguem criar a emoção poética que só a grande arte consegue atingir. E, aqui e ali, emerge a ironia, estratégia de sobrevivência de uma poesia que, se tremendamente grave, poderia parecer escusada.
Num poema de António Amaral Tavares, autor recém-descoberto por Renata Correia Botelho, diz-se: “Doutor há muito pouco tempo para a poesia”. Podemos vir com a conversa de circunstância, habitual nos salões e nas redes sociais: todos os dias são dias para a poesia. Não são, até porque há dias em que é preciso ir pagar o IRS. E por isso, já que existe um dia só consagrado ao género, que o aproveitemos para lermos e dizermos poemas, para celebrar a poesia como serena partilha, numa comunidade diversa.

Luís Filipe Castro Mendes

“Magnificat” de Álvaro de Campos

Cada poema é um encontro, no processo em que é escrito tanto como no processo em que é lido. Encontrei há muito tempo este poema e sei que de repente ele me veio cortar a respiração e ferir-me com a terrível consciência de que nunca poderemos sair do nosso próprio ser, nem pela vida nem pela morte. Cárcere do ser, li mais tarde no mesmo Álvaro de Campos. Mas o soco que o poema dá em nós (“e a dor dói como um soco”, Alexandre O’Neill) só o sentimos bem nesses momentos em que da ideia se passa ao espanto quase físico do encontro com uma verdade de nós que nós não sabíamos. O poeta é afinal aquele que sabe dar-nos de surpresa um soco no mais fundo do que somos. Para com isso aprendermos a ver melhor o esplendor do mundo.


Quando é que passará esta noite interna, o universo,
E eu, a minha alma, terei o meu dia?
Quando é que despertarei de estar acordado?
Não sei. O sol brilha alto,
Impossível de fitar.
As estrelas pestanejam frio,
Impossíveis de contar.
O coração pulsa alheio,
Impossível de escutar.
Quando é que passará este drama sem teatro,
Ou este teatro sem drama,
E recolherei a casa?
Onde? Como? Quando?
Gato que me fitas com olhos de vida, que tens lá no fundo?
É esse! É esse!
Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;
E então será dia.
Sorri, dormindo, minha alma!
Sorri, minha alma, será dia!


Fernando Pessoa

Inês Fonseca Santos

“Passagem”, de Manuel António Pina

Escolho o poema que fecha a obra de Manuel António Pina, se é que tal é possível, um poema que feche seja o que for, em vez de abrir. E escolho-o porque, figurando como poema final, como derradeiro poema, aponta, logo no título, para a noção de “Passagem”, para esse movimento cíclico a que está condenado o poeta, o criador, «[a]gora que os deuses partiram». Esse eterno retorno às palavras que se situam «tão sem peso por cima do pensamento» é a maior celebração da poesia no que ela tem de possibilidade de fuga ao uso comum da linguagem e no modo como ela, a poesia, se continua a escrever (e inscrever) mesmo não tendo mais do que palavras para dizer o mundo. Dá-se ainda o caso de este poema me ser dedicado. Lembrá-lo hoje — e todos os dias — é o meu modo tosco de agradecer e retribuir a Pina.


Com que palavras ou que lábios
é possível estar assim tão perto do fogo
e tão perto de cada dia, das horas tumultuosas e das serenas,
tão sem peso por cima do pensamento?
Pode bem acontecer que exista tudo e isto também,
e não só uma voz de ninguém.
Onde, porém? Em que lugares reais,
tão perto que as palavras são de mais?
Agora que os deuses partiram,
e estamos, se possível, ainda mais sós,
sem forma e vazios, inocentes de nós,
como diremos ainda margens e diremos rios?


mapina

Manuel Cintra

“Muriel”, de Ruy Belo

É, desde sempre, não só o meu poema de amor favorito em toda a literatura portuguesa (que eu conheça) como é, mais do que isso, o meu poema favorito. Acontece que o tema dominante no que escrevo é o amor, e dentro do amor, por razões muito pessoais e objectivas, o desencontro. Este poema fala de ambos, como a meu ver só o Ruy Belo soube fazer. Para além da música das palavras, como sempre incomparável, o Ruy consegue aqui uma emoção, uma intensa tristeza, uma maneira de ir ao encontro do amor tornando-o impossível que me comove sempre, e que se me entranha de cada vez que o leio, seja para mim, seja para outrem. Como sempre, a ferramenta certeira é, além disso, a morte. O Ruy utiliza a morte, seu tema obsessivo, tanto para falar de amor como para o que quer que seja. Ora fá-lo com uma profundidade e uma melancolia tais, que sempre, há trinta anos que leio este poema, ele renasce em mim, e põe-me a chorar por dentro. São razões muito físicas e emotivas, nada intelectuais.


Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava […]


[este é um excerto de “Muriel”. Ouça aqui o poema na íntegra:]




Francisco José Viegas

“Os Justos”, de Jorge Luis Borges

O poema “Os Justos”, de Jorge Luis Borges, resume a ideia de que há poemas que salvam a nossa vida. À medida que o tempo passa, que a morte se atravessa no caminho, que a memória exige esforço e sacrifícios cada vez mais pesados, a poesia parece transportar algum material de salvação. Não para a morte, física e real — mas para a vida, que falha tantas vezes. Não é uma solução nem um bálsamo; é um fragmento de beleza (e de alegria, e de serenidade, e de atenção) que busca a nossa perplexidade.




Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sul jogam um xadrez silencioso.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que leem os tercetos finais de certo canto.
O que acarinha um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo.


Jorge_Luis_Borges_1951,_by_Grete_Stern

Inês Lourenço

“Não só quem nos odeia ou nos inveja”, de Ricardo Reis

Nos tempos que correm, apetece saborear esta ode pessoana, enquanto desafiante e sabotadora dos actuais estilos de vida e de pensamento. Vão pela borda fora os empreendedorismos, o ter cada vez mais e melhores coisas, os hedonismos vários e até os monoteísmos, que tantas guerras sangrentas proporcionam, seguindo o poema um paganismo sadio e ético. Claro, que há a questão das influências, horacianas, epicuristas, estóicas ou heraclitianas. Mas os grandes poetas são intemporais. Dão-nos sempre capacidade acrescida de respiração e de aceder a uma total liberdade, anulando as contingências do mundo.


Não só quem nos odeia ou nos inveja
Nos limita e oprime; quem nos ama
Não menos nos limita.
Que os deuses me concedam que, despido
De afectos, tenha a fria liberdade
Dos píncaros sem nada.
Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada
É livre; quem não tem, e não deseja,
Homem, é igual aos deuses.

João do Nascimento

“O pai morava no fim de um lugar”, de Manoel de Barros

Descobri a poesia de Manoel de Barros em 2001, e não foi preciso mais do que a leitura breve de alguns dos seus poemas para que me tocasse. A visão profunda que transpira na sua escrita dos elementos vulgares, tão quotidianos quanto imensos e desimportantes, é tão grande que ganha nos seus textos a dimensão harmoniosa daquilo a que alguns chamarão: alma.
Senhor do pormenor, em Manoel de Barros tudo é tão insignificante quanto grandioso, percepcionando-se a essência humana em objectos simples e banais misturados de forma imprópria, irónica, tocando-se a natureza, o lixo, os despojos do quotidiano e os lugares, de maneiras imprevisíveis e luminosas. Os rios caminham sobre latas e os alicates dormem em esteiras. Realidade só revelável pela voz da poesia.
Ainda que português, ou cidadão de outra qualquer nacionalidade, ao ler os textos tão intrinsecamente brasileiros de Manoel de Barros, o leitor percebe o que é isso de linguagem universal. O que é isso de poesia.


O pai morava no fim de um lugar.
Aqui é lacuna de gente – ele falou:
Só quase que tem bicho andorinha e árvore.
Quem aperta o botão do amanhecer é o arãquã.
Um dia apareceu por lá um doutor formado: cheio de
suspensórios e ademanes.
Na beira dos brejos gaviões-caranguejeiros comiam
caranguejos.
E era mesma a distância entre rãs e a relva.
A gente brincava com terra.
O doutor apareceu. Disse: Precisam de tomar anquilostomina.
Perto de nós sempre havia uma espera de rolinhas.
O doutor espantou as rolinhas.

João Luís Barreto Guimarães

“Musée des Beaux Arts”, de W. H. Auden


Porque encontro neste poema – para além de aspectos mais técnicos de oficina que me agradam profundamente, como por exemplo a métrica ou a dicção -, todo aquele sentido trágico da vida e do sofrimento que o acaso dos dias tantas vezes nos apresenta colado à comicidade. Tragédia e comédia, só aparentemente opostas. Alguém escreveu que a tragédia é somente comédia mal desenvolvida. E o facto deste poema interligar a mitologia grega com a pintura de Brueghel, numa ekkfrasis de tom quase coloquial, torna este poema moderno hoje como daqui a cem anos. A persona poética conversa com o leitor através de uma qualidade de verso assinalável, com vários estratos de leitura, o que faz com que o poema, aparentemente, não se esgote. É um texto de um grande grande poeta, dono de uma intelecção pensada e repensada. Imenso.


Acerca do sofrimento, nunca se enganaram
Os Velhos Mestres: quão bem entenderam
A condição humana; como está presente
Enquanto alguém se alimenta ou abre uma janela ou monotonamente segue a caminhar;
Como, enquanto os velhos esperam apaixonada e reverentemente
Pelo miraculoso nascimento, deve sempre haver
Crianças que não queriam especialmente que acontecesse, patinando
Num lago na orla da floresta:
Nunca esqueceram
Que até o mais terrível martírio deve seguir o seu curso,
Custe o que custar, a um canto, nalgum lugar descuidado
Onde os canídeos acorrem em suas vidas de cão, e o cavalo do torturador
Coça seu inocente traseiro por detrás de uma árvore.
No Ícaro de Brueghel, por exemplo: como tudo se afasta
Ociosamente do desastre; o lavrador poderá
Ter ouvido o splash, o grito desamparado,
Mas para ele não era um importante fracasso; o sol brilhou
Como soía sobre as pernas brancas que desapareceram na verde
Água; e o frágil e grandioso navio que deve ter avistado
Algo espantoso, um rapaz caindo do céu,
Tinha um destino para ir e afastou-se calmamente.


format, portrait;male;elderly;The, Stage;Playwright;Roles, &, Occupations;Personality;British;American;ES, BB, 9386;ES, P/AUDEN/WYSTAN, HUGH/BRITISH, POET,

Tiago Gomes

“Ocupamos a praia do Amor”, de Lawrence Ferlinghetti

Um poema sobre ocupantes, amantes e demais revolucionários. Do sobrevivente da geração beat, um poema que também pode ser uma celebração das maravilhosas praias portuguesas. Ferlinghetti, figura menos conhecida da geração beat, mas de importância fundamental como editor, por exemplo, do livro “Uivo” de Allen Ginsberg e fundador das importantíssimas livrarias City Lights em São Francisco, epicentro do movimento da beat generation. Lawrence Ferlinghetti, para mim, mestre da poesia do quotidiano, social e de uma simplicidade desarmante. A ler, muito actual. O autor cumpre 97 anos no dia 25 de março.


Ocupamos a praia do amor
entre bandolins de Picasso repletos de areiae patas de esfinge semi-enterradas
e papéis de piqueniquepatas de caranguejos mortose marcas de estrelas do mar

Ocupamos a praia do amor
entre sereias encalhadas
com seus bebés berrando e maridos calvos
e bichinhos de madeira feitos em casa
com colheres de gelados a fazer de pés
que não podem amar ou andar
excepto para comer
Ocupamos a orla do amor
seguros como só os ocupantes sabem ser
entre poças remanescentes
de maré salgada de sexo
e os suaves regatos de sémen
e balões flácidos enterrados
na carne macia da areia
E ainda rimos
e ainda corremos
e ainda nos deitamos
nos botões do amor
mas é mais profundo
e mais tarde
que pensamos
e tudo se gasta
e todas as nossas boias d’amor falham
E bebemos e afogamo-nos

Miguel-Manso

“O Autocarro”, de Leonard Cohen

Não sei explicar bem o porquê de escolher este e não outro. Na verdade podia ser outro. Mas este tem um sentido aventureiro que me agrada. Cumprir uma aventura sem sair da secretária.


Era o último passageiro do dia!
Estava sozinho no autocarro
feliz por estarem a gastar todo aquele dinheiro
só para me levarem pela oitava avenida acima.
Condutor! — gritei — somos só tu e eu esta noite
Vamos fugir desta grande cidade
para uma cidade mais pequena, mais de acordo com o coração
Vamos guiar através das piscinas de Miami Beach
tu no assento do condutor e eu vários assentos atrás
Mas nas cidades raciais trocaremos de lugar
para mostrar como te arranjaste no Norte
e vamos descobrir alguma pequena vila piscatória americana
na desconhecida Florida
e parar junto à areia
um enorme autocarro chamando sobre si as atenções
metálico, pintado, solitário
com matrícula de Nova York


GAND, GHENT, AFP,

Margarida Ferra

“O Canto da Chávena de Chá”, de Fiama Hasse Pais Brandão

Não é a primeira vez que repito este poema quando me pedem um. Gosto do modo como Fiama chama a poesia e a natureza para contracenarem além das deixas decoradas. Também porque sou uma leitora feliz diante do lirismo temperado com ironia. E apesar de duvidar muito, ainda acho que, a servir para alguma coisa, a poesia estará aqui para nos trazer à mesa novos sentidos, chamando os nossos, vivos, e outras explicações. Como esta de que a porcelana e o osso estão ligadas além da mão que segura a chávena e de que as palavras de um poema encontram o lugar certo no universo para uma mesa de verga (imagino-a desfiar-se, a chávena de chá, agora mal equilibrada, sobre o tampo).


Poisamos as mãos junto da chávena
sem saber que a porcelana e o osso
são formas próximas da mesma substância.
A minha mão e a chávena nacarada
– se eu temperar o lirismo com a ironia –
são, ainda, familiares dos pterossáurios.
A tranquila tarde enche as vidraças.
A água escorre da bica com ruído,
os melros espiam-me na latada seca.
É assim que muitas vezes o chá evoca:
a minha mão de pedra, tarde serena,
olhar dos melros, som leve da bica.
A Natureza copia esta pintura
do fim da tarde que para mim pintei,
retribui-me os poemas que eu lhe fiz
de novo dando-me os meus versos ao vivo.
Como se eu merecesse esta paisagem
a Natureza dá-me o que lhe dei.
No entanto algures, num poema, ouvi
rodarem as roldanas do cenário,
em que as palavras representavam
a cena da pintura da paisagem
num telão constantemente vário.
Só o chá me traz a minha tarde,
com a chávena e a minha mão que são
o mesmo pedaço de calcário.
Hoje a bica refresca a água do tanque,
os melros descem da latada para o chão,
e as vidraças devagar escurecem.
As palavras movem-se e repõem
no seu imóvel eixo de rotação
o espaço onde esta mesa de verga
gira nas grandes nebulosas.


Fiama1

Carlos Alberto Machado

“Tenho de construir hoje esta planície”, de R. Lino

Em cada livro de poemas aprende-se de novo a respirar (como a um corpo amante): o prazer de dizer o poema como nosso, deixarmos de existir entre a sua respiração e a nossa qualquer diferença.
A poesia de R. Lino concentra poderosamente a força e a violência que advêm da “geografia” e do esgaçar da memória, numa serena e delicada mutação em palavras – implodem e espalham a sua força pelo interior, sem o estrondear do definitivo (mortal).


Tenho de construir hoje esta planície.
Separo as ruas, entrego os lados
aos quatro pontos cardeais, faço
do largo um sítio, abro as portas
de um castelo já sem uso.
Subo pelas escadas da torre
até ao cimo dos telhados
uma mancha meio branca
por entre os tapetes de pedra.
Em cima, fica a rua de cima
um gato passa entre as duas
em baixo, fica a rua de baixo.
Escolho as varandas ao redor
há um rio que me leva como um barco
nesse cantar aqui cantado. Hoje tenho
de construir esta planície
as estevas das fronteiras
uma mudança de países
o outro lado retalhado
por vacas e por verdes trabalhados.
Do lado do cemitério
a vida é talvez mais selvagem
os coelhos e as perdizes
e o que nasce sem se plantar.

Rui Almeida

“Nem nos defende a ausência”, de José Augusto Seabra

Dos 21 poetas, nascidos entre 1930 e 1941, incluídos por António Ramos Rosa no volume que constitui a quarta série das ‘Líricas Portuguesas’ (1969), José Augusto Seabra (1937-2004) é, tanto quanto sei, aquele que nunca teve a sua obra poética reunida ou com uma ampla antologia. E todo o sentido faria, pois trata-se de alguém que, nos 14 livros de poemas, publicados entre 1961 e 2002, reflecte um percurso pessoal riquíssimo, que vai desde a experiência do exílio, por causa da oposição ao Estado Novo, até à carreira diplomática que o levou a vários países como embaixador, passando pela experiência académica, em Paris, que o revela como um dos mais importantes estudiosos de Fernando Pessoa, ou pela profunda reflexão crítica da relação da cultura com a cidadania. O poema escolhido é do seu primeiro livro e revela já a marca da «lúcida perscrutação de um espaço interior», apontada por Ramos Rosa, que acompanhará toda a sua obra.


Nem nos defende a ausência:
é o reverso.
Sabemos todos já bem a ciência
da traição que se oculta a cada verso.
Nem nos salva a desculpa
de anoitecer, poetas:
por cada mea culpa,
apontam-nos a morte noutras setas.
Ficar nem chega. Ou ir
ou sepultar-nos.
Foge-nos o tempo já de decidir
Sequer suicidar-nos.
A bem ou mal, poetas.
Liberdade
só esta que sorri por entre as frestas
hesitante do peso da verdade.

Leonardo

“IX”, do “Discurso sobre a reabilitação do real quotidiano”, Mário Cesariny

Por (e para) altura do nosso tempo imediatista, que, por milagre ou paradoxo, consegue estagnar nas coisas mais velhas do mundo, surgir-nos-ia Cesariny. Os seus versos, aqui, não deixam de me lembrar uma cabeça de que se derramasse uma cascata. À superfície temos a imprevisibilidade dos lados para que se derrama, o ritmo estrondoso das águas a bater em si próprias. Depois, são as imagens que se riem ruidosamente de nós, «homens só até aos joelhos», «lindas lindas raparigas só até ao pescoço», «poetas até à plume», riem-se que permitamos que nos fechem o caminho para a «noite Cadillac obsceno». E quem diria que voltaríamos ao tempo (ou nunca saímos?) em que «o joelho está tão barato»? Já no fundo de tanto riso, acredita-se, há-de haver alguma amargura. E, portanto, esperança. Pelo que a maravilha da poesia está aqui: quando as palavras se conseguem alimentar de um tempo e de um espaço posteriores, corroendo-os. Muito mais estará nestes que pisamos, em que se diz muito pouco, ou em que aquilo que se pode dizer tem os seus respectivos estágios de afogamento.


no país no país no país onde os homens
são só até ao joelho
e o joelho que bom é só até à ilharga
conto os meus dias tangerinas brancas
e vejo a noite Cadillac obsceno
a rondar os meus dias tangerinas brancas
para um passeio na estrada Cadillac obsceno
e no país no país e no país país
onde as lindas lindas raparigas são só até ao pescoço
e o pescoço que bom é só até ao artelho
ao passo que o artelho, de proporções mais nobres,
chega a atingir o cérebro e as flores da cabeça,
recordo os meus amores liames indestrutíveis
e vejo uma panóplia cidadã do mundo
a dormir nos meus braços liames indestrutíveis
para que eu escreva com ela, só até à ilharga,
a grande história de amor só até ao pescoço
e no país no país que engraçado no país
onde o poeta o poeta é só até à plume
e a plume que bom é só até ao fantasma
ao passo que o fantasma – ora aí está –
não é outro senão a divina criança (prometida)
uso os meus olhos grandes bons e abertos
e vejo a noite (on ne passe pas)
diz que grandeza de alma. Honestos porque.
Calafetagem por motivo de obras.
relativamente queda de água
e já agora há muito não é doutra maneira
no país onde os homens são só até ao joelho
e o joelho que bom está tão barato


www.omarona.blogspot. com Mário Cesariny de Vasconcelos (1923-2006)

Cláudia R. Sampaio

“Homens que são como lugares mal situados”, de Daniel Faria

Poema que confirma o génio de Daniel Faria e de uma maturidade assombrosa para um jovem poeta. Revelador da sua visão mística e visceral, é ainda de um perfeito domínio formal aliado a uma poesia que ilumina, numa incessante busca e contemplação e numa serena exaltação dos mistérios do homem, intensificando-os, deixando-os no lugar.


Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens sem fuso horário
Homens agitados sem bússola onde repousem
Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas
Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas
Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são como sítios desviados
Do lugar

Pedro Mexia

“A de Sempre, Toda Ela”, de Paul Éluard

Lembro-me do tempo em que comecei a ler seriamente poesia, e em que «a poesia» se identificava quase por completo com este poema de Paul Éluard (traduzido por António Ramos Rosa): aspiração, celebração, invenção, espanto. Comecei por encontrar uma tradução de Hölderlin, clássico-romântico, poeta de grandes exaltações e grandes odes, mas logo depois descobri Éluard, mais acessível, mais contemporâneo, um dos surrealistas franceses, talvez o maior poeta francês do seu tempo. E até encontrar um estilo que fosse mais ou menos meu, este era o estilo eu imitava: a de um intimismo comovido, reiterativo, agradecido, poemas sobre a grande alegria de ter ou não ter, a candura de esperar, a inocência de conhecer. Mas Eliot refreou-me essa tendência, tal como os disfóricos Hardy e Larkin, e Álvaro de Campos, e a vida também. De modo que hoje vejo Éluard como uma recordação de um momento em que a poesia era uma evidência, uma omnipresença. Já não acredito nisso, mas estou grato por essa ficção de juventude


Se eu vos disser: «tudo abandonei»
É porque ela não é a do meu corpo,
Eu nunca me gabei,
Não é verdade
E a bruma de fundo em que me movo
Não sabe nunca se eu passei.
O leque da sua boca, o reflexo dos seus olhos
Sou eu o único a falar deles,
O único a ser cingido
Por esse espelho tão nulo em que o ar circula através de mim
E o ar tem um rosto, um rosto amado,
Um rosto amante, o teu rosto,
A ti que não tens nome e que os outros ignoram,
O mar diz-te: sobre mim, o céu diz-te: sobre mim,
Os astros adivinham-te, as nuvens imaginam-te
E o sangue espalhado nos melhores momentos,
O sangue da generosidade
Transporta-te com delícias.
Canto a grande alegria de te cantar,
A grande alegria de te ter ou te não ter,
A candura de te esperar, a inocência de te conhecer,
Ó tu que suprimes o esquecimento, a esperança e a ignorância,
Que suprimes a ausência e que me pões no mundo,
Eu canto por cantar, amo-te para cantar
O mistério em que o amor me cria e se liberta.
Tu és pura, tu és ainda mais pura do que eu próprio.


Paul_Éluard_circa_1930

Antonio Cicero

“Anoitecer em Outubro”, de Ferreira Gullar

Observe-se uma característica curiosa desse poema. Ele evoca a transitoriedade da vida humana, porém não é depressivo. É que o poema celebra esse momento particular da vida, logo, celebra a vida, mesmo reconhecendo sua finitude. O poema é um monumento a esse momento efêmero da vida, momento mais valioso ainda até mesmo em virtude de sua efemeridade. “Efêmero” é o que dura um dia: e o poema colhe esse dia: “carpe diem”, como se diz em latim.


A noite cai, chove manso lá fora
meu gato dorme
enrodilhado
na cadeira
Num dia qualquer
não existirá mais
nenhum de nós dois
para ouvir
nesta sala
a chuva que eventualmente caia
sobre as calçadas da rua Duvivier

Renata Correia Botelho

“Doutor eu tenho uma guerra tremenda dentro da minha cabeça”, de António Amaral Tavares

Era-me, até há poucas semanas, desconhecido o seu nome: António Amaral Tavares. Nunca lera nada dele, não me soava sequer familiar. Cheguei à sua poesia depois de o saber vencedor, no final de 2015, do Prémio Nacional de Poesia Diógenes, atribuído pela revista Cão Celeste. Foi dos encontros mais impressionantes que vivi. Um estrondo que nos fica a latejar, impiedoso, entre os dedos e o coração. Despojado de astúcias poéticas, cru e dorido como a noite. E, no fim das palavras, como se à noite não se seguisse mais nada.


Doutor eu tenho uma guerra tremenda dentro da minha cabeça
um euro e trinta e cinco cêntimos 16 de Agosto de 2011
não dá para o tabaco. Quero lembrá-lo que o verão está a acabar
e eu já ouço passos nos caminhos da lama e do medo
e há coisas que só no verão se fazem e eu ainda não fiz
como ouvir o rumorejar do mar nos meus pulsos.
Os seus medicamentos doutor deixam-me sem mim
o meu pai disse-me que a minha doença só lhe traz problemas
doutor há uma pedra intraduzível entre nós dois
quero dizer-lhe que há pessoas muito pobres que querem
o meu rim esquerdo doutor o mundo não é perfeito
e não me diga para lhe contar tudo como a um padre
eu não quero morrer outra vez essa frase fá-lo muito feio.
Acredite que vi gente morrer porque era maior que o corpo
tenho a impressão que o corpo não sabe o que tem dentro
acredite que consigo fundir uma lâmpada só com o olhar
já fundi muitas lâmpadas só com o olhar
e que vi um anjo atravessar os muros de um hospício
rasante e belo como uma garça.
Doutor há muito pouco tempo para a poesia.
Isto que lhe digo é verdade todos os dias doutor.


a amaral tavares

José Anjos

“Como?”, de Vasco Gato

Poema absoluto do Vasco Gato sobre o mistério da sublimação e do seu maior ofício: o gesto. o gesto de colher, de receber na medida certa da intenção (a nossa e a das próprias coisas); o gesto que desaparece para dar lugar ao fruto; o gesto de ter escrito— o “mover de mão” —; o poema — gesto e fruto ao mesmo tempo; o gesto de ter acabado de o ler pela primeira vez; o gesto de repetição; a pergunta — gesto de empreender a percepção do que ainda não existe; a espera — gesto do tempo; o tempo — gesto de Deus.


colher
dos ramos altos
sem saltar
o fruto sereno
da tua passagem
— como?


vasco gato

Carlos Bessa

“Desculpas não faltam”, de José Miguel Silva

Entre os muitos poemas de que gosto escolho “Desculpas não faltam” (do livro Serém, 24 de Março. Averno, 2011), de José Miguel Silva, pelo tom e pelo modo como, em poucos versos, se mostra que a poesia que realmente importa seduz, emociona e deslumbra, podendo mesmo brincar prosaicamente com topos e temas clássicos e transfigurar, com algum humor, pequenos aspectos do quotidiano, que ganham assim outra claridade.


Uma casa junto ao Vouga,
rio de água suficiente,
onde apenas se mergulha
até à cintura, a pequena horta
de Virgílio, o amor robustecido
por nenhuma esperança
e tantos livros para ler
– que desculpa vou agora dar
para não ser feliz?


silvajm_foto

João Rios

“Ao lado”, de Joaquim Castro Caldas

Verso a verso o poema entranhou-se como corpo de pássaro sobre a toalha de mesa. Do seu voo restam ainda cores de incêndio e a mais genuína arte de reeducar o silêncio.


havia tantas coisas
que eu te queria dizer
se não fosse o abismo
de te perder num afago
de te ter do outro lado
do medo à minha beira
havia tantas coisas
que eu te queria dizer
se não fosse o amor
que há noites ao teu lado
em que me dói não sei
onde é que a distância ai

Rui Cóias

“The Hollow Men”, de T.S. Eliot (excerto)

Ler e pensar este poema de Eliot é como escolher o fim de um mundo, o início de um tempo agonizante, acompanhar uma mão que vai esculpindo, com o seu rigor, crueza formal e limpidez absolutamente inebriantes, as lamentações de ideais perdidos do primeiro quartel do século XX, que são, na sua essência, como que uma estrela crepuscular na história que nos dirige através do desmoronamento e da ambiguidade sombria.
A sua imagem permite-nos a rememoração enigmática, como se andássemos ao longo de um vale vazio (hollow valley) atormentados pelas cinzas da esperança, da nossa, e do mundo, enquanto, mesmo por isso, ouvimos para sempre os seus versos na voz entrecortada de Marlon Brando, entre as sombras, da selva, do Apocalypse.


Nós somos os homens vazios
Somos os homens de palha
Apoiados uns nos outros
A parte da cabeça cheia de palha. Ai
As nossas vozes foram secas e quando
Juntos sussurramos
São serenas e sem sentido
Como vento em erva seca
Ou pés de ratos sobre vidro partido
Na secura da nossa cave
Molde sem forma, tonalidade sem cor,
Força paralisada, gesto sem movimento;
Os que cruzaram
Com os olhos certeiros, para o outro reino da morte
Lembram-se de nós – quem sabe – não de
Violentas almas perdidas, mas somente
De homens vazios
Homens de palha.


Thomas_Stearns_Eliot_by_Lady_Ottoline_Morrell_(1934)


Nuno Costa Santos, 41 anos, escreveu livros como “Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco” ou o romance “Céu Nublado com Boas Abertas”. É autor de, entre outros trabalhos audiovisuais, “Ruy Belo, Era Uma Vez” e de várias peças de teatro.



terça-feira, 5 de abril de 2016

Portugal Futuro

"O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro."

Ruy Belo , in “País possível” 

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Eça de Queirós ainda explica Portugal?

Nuno Costa Santos
«Com as novas edições pela Guerra & Paz e um prémio SPA para "Os Maias" em versão televisiva, tentamos saber se o autor ainda explica o país ou se precisamos de quem faça um retrato sem piedade.
Numa entrevista recente dada ao Observador, José Rentes de Carvalho perguntou como é que nenhum escritor português recriou José Sócrates em termos ficcionais. “Como personagem romanesco é uma mina de ouro. Mas nenhum escritor pegou ainda nele. Nem os mais jovens. Eu faria dele um Rastignac como o de Balzac.”
O colunista João Pereira Coutinho crê que Sócrates não seria uma boa personagem, optando por banhar o seu comentário num caldo de ironia: “Para que um personagem resulte, é preciso um grau de adesão mínimo à realidade. Sócrates e as suas histórias — o amigo do dinheiro, a condessa de Paris, etc. — são demasiado irreais para um personagem realista.”
Maria Filomena Mónica, socióloga e historiadora, vai no sentido da opinião de Rentes de Carvalho: “Sócrates é um político desprezível e uma fonte de inspiração soberba para um romancista contemporâneo.” Em todo o caso a autora de, entre vários livros, uma conhecida biografia de Eça de Queirós assume que vive num universo mental distante destes anos políticos. Habita o século XIX, rodeada das suas figuras, o que lhe causa situações divertidas como a que viveu há tempos. Num grupo, falando com um político importante do PSD, ele mencionou o Marco António. Filomena Mónica fez a pergunta: “O de Roma?”.
Manuel S. Fonseca, editor da Guerra & Paz, editora que recolocou por estes dias nas livrarias Os Maias e A Cidade e As Serras, considera que justamente Rentes de Carvalho talvez seja o escritor que mais se assemelha ao autor de “O Conde de Abranhos”. “Não percebo nada de heranças, mas um notário meu amigo fez o favor de me chamar a atenção para ele.” Talvez por ser estrangeirado tenha, como Eça, “uma visão desassombrada de Portugal e invista nas personagens”.
a cidade e as serras
Capa da nova edição de “A Cidade e as Serras”, pela Guerra & Paz
É legítimo pensar-se que de facto José Sócrates poderia ser um petisco para a pena de um Eça de Queirós. Tal como um Miguel Relvas. Um Duarte Lima. Um Oliveira e Costa. Mas, como diz Rentes, falta quem revele apetência por escrever um romance baseado em figuras que poderiam dar um retrato possível de um certo Portugal político, económico e social – já não o do século XIX mas o do século XXI.

Sombra de nós mesmos

Continua a dialogar-se com o autor de A Capital! mas por via da ficção. Como se ainda fosse uma necessidade conversar com o seu espírito agudo para perceber um presente português que vai escapando à atenção dos autores. No terceiro conto do último livro de João de Melo,Os Navios da Noite, editado pela Dom Quixote, ficciona-se um reencontro, hoje, entre João da Ega e o autor que lhe deu vida.
O texto chama-se “O Regresso de João Maria” e aí se escreve que o país entretanto se engravatara mas que continua com “a mesma raça de indolentes cheios de lábia, uma gente provinciana que o poder arrebanhara e fora tosquiando a seu estrito critério”. Mantêm-se “os mesmos padres santos ou pecadores, os políticos de carreirinha que hoje prometem o que amanhã deixarão por cumprir”.
Diz Maria Filomena Mónica que não foi Eça que “contaminou” a visão que os portugueses têm do seu país, mas a realidade. “Esta imagem está em todo o lado, mas nenhuma figura a ilustra melhor do que o Zé Povinho, um saloio patético que faz manguitos nas costas do patrão, porque, à sua frente, não tem coragem de dizer o que pensa.”
Lê-se no conto que no Largo de Camões, em Lisboa, misturados com nórdicos, passam por ali “os amigos janotas” da família Maia, assim como os Gouvarinho, os Palma Cavalão, os Jacintos, os Pachecos de grande e inútil talento, os Curvelo, os Macários, os Matias que iam a enterrar. (…)”. Pergunta-se: “Como isso era possível – nada ter mudado, continuar-se no mesmo marasmo social, país de castas e tribos, numa seca tremenda, uma tão excelentíssima e reverendíssima sensaboria?”
Segundo João de Melo, Eça fixou “uma sombra ou uma silhueta de nós mesmos”. Não necessariamente rostos ou fisionomias concretas. Tudo o que habitualmente designamos por “tipos” — comportamentos e modos de pensar típicos e caracterizadores de uma “condição” portuguesa. Os clérigos de Eça são, no entender do último Prémio Vergílio Ferreira, “sombras dos antigos inquisidores do Santo Ofício”. Condição patente em O Crime do Padre Amaro, personificado tanto no cónego Dias, da primeira geração eclesiástica, como no próprio Amaro, seu ex-discípulo e, portanto, representante da segunda geração. “Mas não devemos esquecer as grandes figuras do Conde de Abranhos, deputado oco, vazio, pesporrente, de que sempre abundam muitos dos nossos eleitos de hoje, ou a do Conselheiro Acácio, versão negativa do administrador de justiça, cujo pensamento social, por retrógrado e estereotipado, denuncia bem o sistema filosófico em que assentava a noção de cidadania.”
Mais há mais: o cidadão Pacheco, descrito na Correspondência de Fradique Mendes como “homem de grande talento” é, para o autor de O Meu Mundo Não é Deste Reino, alguém que continua no meio de nós. Criaturas, ainda hoje, cuja aura não encontra sustento em obra feita nem em mérito reconhecido. Cita Melo uma famosa passagem queirosiana: “Pacheco não deu ao seu país nem uma obra, nem uma fundação, nem um livro, nem uma ideia. Pacheco era entre nós superior e ilustre unicamente porque tinha um imenso talento.” No entanto este talento, que duas gerações festejaram, “nunca deu, da sua força, uma manifestação positiva, expressa, visível”.

Condes de Gouvarinho

Pululam muitos por aí, de facto – e muitos reúnem-se pela noite dentro, à volta das mesas de bares decadentes ou em higiénicos chats de facebook, para discorrer sobre os seus “projectos”. Não é difícil, hoje em dia, descobrir Pachecos do Norte ao Sul do país. Mas, sublinha João de Melo, é em Os Maias que mais abunda a chamada “galeria de tipos lusitanos”.
os maias
Nova capa para “Os Maias”
Nem é pelo facto de as suas personagens estarem construídas à medida de uma concepção monárquica do poder que, no entender do escritor, deixam de ser eternas à sua medida. “Estes é, de algum modo, o Portugal dos condes de Gouvarinho, dos banqueiros ociosos, dos jornalistas venais, dos ‘dandies’ pretensiosos e inúteis, mas também dos Joões da Ega e dos Carlos da Maia inconsequentes e igualmente inúteis.”
Manuel S. Fonseca pensa que é grande a tentação de usarmos Eça como se fosse uma kalashnikov. “Ele disse coisas sobre políticos e fraldas e outras muito pouco platónicas sobre a Grécia que parecem quase ser respostas directas – e directas já – a situações políticas actuais”. Mas Fonseca prefere fazer justiça à “bela cabeça de Eça” e o que vê nessa mesma cabeça é “desenhar-se um humaníssimo teatro do mundo de fantasia e ficção universais, que vão além da urgência política”.
No feminino, por exemplo, vê muitas diferenças: “É provável que ainda haja Padres Amaros a seduzir Amélinhas. Mas quero acreditar que sobretudo as mulheres portuguesas mudaram muito, para não dizer tudo.” Hoje, a mulher portuguesa urbana é, nas palavras de Fonseca, “senhora de si, do seu destino e faria morrer de inveja a loiríssima beleza da Maria Eduarda de ‘Os Maias’”. Ou talvez não, nota Manuel. Talvez a mulher portuguesa moderna seja hoje uma irmã de Maria Eduarda, com “o mesmo passo de deusa”, “o resplandecente decote” que o vestido preto realça.

Uma aldeia chamada Chiado

Eça de Queirós ainda explica Portugal? “Sim e não”, diz Maria Filomena Mónica. “A sociedade da segunda metade de Oitocentos era diferente da de hoje”. Recorda a presença significativa de padres e de beatas, personagens ao tempo com poder, mas que passaram à História. “Leia-se o esplendoroso início de ‘O Crime do Padre Amaro’ sobre a morte do pároco da Sé de Leiria. Figuras como esta não poderiam surgir num romance contemporâneo porque já não existem”. Lembra ainda que, numa era em que as adolescentes tomam a pílula, não teria ocorrido ao padre Amaro a ideia do infanticídio nem a Amélia teria morrido. “Há finalmente as cenas sacrílegas que deixaram de poder ser compreendidas pela maioria da população contemporânea.”
Lisboa, para o editor da Guerra & Paz, nunca existiu. “É uma dessas cidades muralhadas que constam do ‘Dicionário dos Lugares Imaginários’ de Alberto Manguel e Gianni Guadalupe. E tal como descobriram o Yoknapatawpha County nos livros de William Faulkner, Manguel e Guadalupe descobriram essa imaginária cidade de Lisboa nos romances de Eça.” Essa cidade de luz límpida tem no seu centro “uma aldeia chamada Chiado”, pela qual se passeiam insólitos homens de fraque contrastando com o pano de fundo de uma população anémica. Há um grande Terreiro, ao qual o escritor de monóculo chama Arcada. “O olhar dele perde-se, desliza, flutua sobre um rio como é impossível haver um rio assim na prosaica realidade”.
Mário de Carvalho é um dos raros autores, num país muito dado ao lirismo mesmo na prosa, que, através de uma linguagem escolhida com esmero, fazem uso do humor satírico e da ironia nos seus romances. Para responder à pergunta “considera-se influenciado pelo tom de Eça?, Mário de Carvalho recorda uma conversa com um escritor seu amigo, António Torrado. “O Eça pega-se”, disse-lhe Torrado.
Lisboa, 13/06/2015 - Realizou-se esta tarde na Feira do Livro de Lisboa entrevistas com escritores e editores. Mário Carvalho (Nuno Pinto Fernandes/Global Imagens)
O autor de Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde assume os perigos do vírus queirosiano: “De facto, se não nos acautelarmos, a maneira queirosiana vai-se insinuando, subtilmente, entre as nossas linhas”. Mas o perigo de contágio advém de uma pesquisa necessária do cânone literário que nos trouxe até aqui. “Há uma literatura secular em Português com que temos de nos confrontar. Eça está lá. Desafia-nos. Ainda que se deteste, o que tem acontecido, aliás com jactância, não há que fugir-lhe. Ou então paga-se um preço bem alto.”
O também autor de “A Sala Magenta” crê que a excelência do artifício de um autor excelente como Eça está em fazer crer que o mundo é realmente assim. “Mas trata-se de puro fingimento. Eficaz, sem dúvida”. Relembra “A Relíquia”, romance que, ainda hoje, há quem prefira, a seu ver, ocultar. “Anda por lá um Alpedrinha, português trota-mundos encontrado em Alexandria, que vai ‘carregando fardos alheios’ por casa do Diabo Mais Velho, sempre prestável, disponível e saudoso da Pátria: ‘-E o cavalheiro recebeu alguns jornais da nossa Lisboa? Gostava de saber como vai por lá a rapaziada…’ O ‘derradeiro lusíada’, chama-lhe Eça”.
Mário de Carvalho usa de uma formulação curiosa para trocar umas ideias sobre o assunto: “Sem querer ser desmancha-prazeres, nem frustrar um interessante exercício lúdico, eu era capaz, tomando o apelo de Eça a Bulhão Pato, de pedir aos ‘portugueses’ que saíssem de dentro das personagens dele.” Tal como defende o editor da Guerra & Paz, considera que a Lisboa de Eça, como Jerusalém, ou Leiria, são criações do autor, a partir de referentes reais. Mas, alega, é inegável que Eça criou tipos universais que evocam “comportamentos”, “atitudes”, “falas do mundo real” dos nossos tempos. “Quando comentamos um certo discurso ‘acaciano’, dizemos que tal ou tal fulano é um ‘Zé Matias ou um Gouvarinho’, ou reproduzimos falas como ‘há talento, há saber…’, ‘ainda o apanhamos’, ou ‘a inveja da Europa’, damos testemunho da genialidade criadora de Eça.”

A choldra

Há quem ache que o desdém queirosiano pelo país da “choldra” está disseminado, revelando-se no português comum, em todas as oportunidades que encontra. Por exemplo, naquele taxista que destrata o Portugal dos “tachos” quando passa perto da Assembleia da República. As palavras são de Manuel S. Fonseca: “Faça-se o taxista português num almofariz, pisando-se muito bem o cebolinho que é o Eça e o alho que é o Camilo. Há nele um desmesurado e avassalador ódio ao mundo e o gosto pelas Marias que matam a sua mãe”. E acrescenta: “Seja como for, o país, hoje, já apanhou um táxi que o Eça do ‘americano’ desconhecia.”
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“Os Maias”, na adaptação de João Botelho
João de Melo defende que é preciso afastar a ideia de que Eça era um “estrangeirado” e de que “não gostava de Portugal”. “Não é verdade: por o ter amado tanto é que ele o quis projectado sobre a ideia do progresso e da República”. Para Maria Filomena Mónica, o que leva grande parte dos portugueses, especialmente os que nunca leram Eça, a considerar que tudo quanto ele escreveu se aplica ao Portugal de hoje são factores estruturais: a incompetência dos políticos, a pobreza do país e a dependência do Estado.
“É sobretudo em ‘As Farpas’ que a magnífica raiva do jovem Eça é mais notória.” O inimigo principal são os políticos. Cita três pequenos extractos: “O corpo legislativo há muitos anos que não legisla. Criado pela intriga, pela pressão administrativa, pela presença de quatro soldados e um senhor alferes, e pelo eleitor a 500 réis, vem apenas a ser uma assembleia muda, sonolenta, ignorante, abanando com a cabeça que sim.”
Sobre o governo do dia (1871): “Não governa, não tem ideias, não tem sistema; nada reforma, nada estabelece; está ali, é o que basta”. A conclusão era, para ele, óbvia: “E assim se passa, defronte de um público enojado e indiferente, esta grande farsa que se chama a intriga constitucional. Os lustres estão acesos; o país distraído; nada tem de comum com o que se representa no palco; não se interessa pelos personagens e acha-os impuros e nulos”.
Pereira Coutinho identifica os portugueses como sendo assim: a oscilação permanente entre o dramático e o indolente. “Ora nos matamos ora chegamos à conclusão que não vale a pena e o melhor é fazer uma jantarada.” Nada é sério porque nada é levado a sério. O que parece ser um defeito é, para o autor de Vamos ao Que Interessa, a nossa maior virtude. “E Eça captou-a.”
Eça chamava a atenção para o facto, “triste”, de os portugueses não se poderem dar ao luxo de ter princípios: “Fomos outrora o povo do caldo da portaria, das procissões, da navalha e da taberna. Compreendeu-se que esta situação era um aviltamento da dignidade humana: fizemos muitas revoluções para sair dela. Ficámos exactamente em condições idênticas. O caldo da portaria não acabou. Não é já como outrora uma multidão pitoresca de mendigos, beatos, ciganos, ladrões, caceteiros, carrascos, que o vai buscar alegremente, ao meio-dia, cantando o Bendito; é uma classe inteira que vive dele, de chapéu alto e paletó. Este caldo é o Estado”.
Ainda se este fosse rico, diz, talvez as coisas se compusessem. Não sendo esse o caso, logo surgia o abatimento geral: “Ora, como o Estado, pobre, paga tão pobremente que ninguém se pode libertar da sua tutela para ir para a indústria ou para o comércio, esta situação perpetua-se de pais a filhos como uma fatalidade.” O resultado não podia ser mais confrangedor: “A pobreza geral produz um aviltamento na dignidade. Todos vivem na dependência: nunca temos por isso a atitude da nossa consciência, temos a atitude do nosso interesse.” Um retrato deprimente muito distante do que se pode fazer do país nos dias de hoje?
Conclui Maria Filomena Mónica que não foi Eça que “contaminou” a visão que os portugueses têm do seu país, mas a realidade. Em Portugal, sempre se imaginou o mundo dividido entre “nós”, as vítimas inocentes, e “eles”, os que mandam. “Esta imagem está em todo o lado, mas nenhuma figura a ilustra melhor do que o Zé Povinho, um saloio patético que faz manguitos nas costas do patrão, porque, à sua frente, não tem coragem de dizer o que pensa.”

Temperamento nacional

João Pereira Coutinho crê que Eça não é um taxista avant la lettre. “O discurso da choldra sempre fez parte da visão que os portugueses têm de si próprios.” Correndo assumidamente o risco de cair num paradoxo, reflecte que essa auto-flagelação permanente é um dos grandes traços da nossa megalomania. “Dizer que Portugal ‘é o maior do mundo’ ou ‘o pior do mundo’ revela o mesmo tipo de narcisismo, embora retratado de perspectivas distintas.”
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João Pereira Coutinho
Segundo Coutinho, cronista e professor universitário, Eça explica bem Portugal e os portugueses mas não pelas razões usualmente citadas: a crítica aos políticos, à nossa pequenez mental, ao provincianismo de uma cultura que se limita a imitar o que vem de fora. “Mais importante do que isso é a capacidade que Eça tem de captar o temperamento nacional”. Nos seus romances acontecem aos maiores torpezas: situações como um irmão que dorme com uma irmã e como um padre que engravida “uma donzela” e depois manda matar o filho. Mas esses momentos trágicos acabam sempre em “pilhéria” — anos depois, o padre passeia-se por Lisboa e confessa que agora só se envolve com casadas.
Pereira Coutinho identifica os portugueses como sendo assim: a oscilação permanente entre o dramático e o indolente. “Ora nos matamos ora chegamos à conclusão que não vale a pena e o melhor é fazer uma jantarada.” Nada é sério porque nada é levado a sério. O que parece ser um defeito é, para o autor de Vamos ao Que Interessa, a nossa maior virtude. “E Eça captou-a.”
Quem é que herdou a voz de Eça no Portugal de hoje? A resposta é logo disparada: “Os nossos melhores cronistas. A grande prosa do século XX, em Portugal ou no Brasil, está nos cronistas de jornal.” A razão, no entender do colaborador da Folha de São Paulo, é simples: o romancista nacional está essencialmente apaixonado pelo seu “mundo interior” e não pelo “mundo exterior” que ocupava a pena de Eça.
Quando pensamos no século XIX, pensa-se em Eça e, mesmo que o seu retrato social seja apenas uma interpretação do próprio sobre o país que muitos historiadores contestam, pelo menos há essa ambição: “retratar Portugal”. Mas se as gerações vindouras quiserem saber o que era Portugal em 2016, elas lerão quem?, pergunta Coutinho: “Ninguém. Os nossos escritores estão demasiado apaixonados por eles próprios para concederam à realidade qualquer tipo de importância”, o que, para o próprio, tem como resultado uma “prosa estéril e que não deixará rasto”. Será que Portugal precisa de um novo Eça?
Nuno Costa Santos, 41 anos, escreveu livros como “Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco” ou o romance “Céu Nublado com Boas Abertas”. É autor de, entre outros trabalhos audiovisuais, “Ruy Belo, Era Uma Vez” e de várias peças de teatro.»

domingo, 3 de abril de 2016

Mãe

"Mãe
hoje abriu-se uma janela pela primeira vez
mas tudo o que pudeste ver foi um
pequeno lago de águas
adormecidas,
rodeado por margens de areia brilhante
um pequeno lago alimentado por
inúmeros afluentes
Mãe
passou uma semana e o meu minúsculo
coração agita já as águas desse
lago
Estou agarrado à margem vejo ao longe
uma pequena bóia
mas o medo impede-me de me afastar
Mãe
porque é que andas tão enjoada?
Passas a vida a correr para o quarto de
banho
Não toleras o cheiro a fritos nem o after-chave do pai
Espero que não enjoes do cheiro a jasmim
Por favor não me confundam com um
girino
Embora não tenha nada contra as rãs
e muito menos contra as libélulas que
povoam os outros lagos
Mãe
estou a ficar velho
disseram-me que já deixei de ser embrião
Mediram-me a translucência da nuca
e eu aproveitei para realizar algumas
pequenas acrobacias
Hoje fiquei finalmente a saber que tinha
ventrículos pulmões
estômago e uma série de coisas mais
incluindo uns grandes lábios que quase
pareciam bolsas escrotais
E eu pensava que aquilo que tinha entre as
pernas era uma rosa
Mãe
Porque é que meu coração bate tão
acelerado?
Por mais que tente não consigo
sincronizá-lo com o teu
Mãe
Só conheço a cor do crepúsculo
Estou morto por conhecer as outras cores
do arco-íris
Mãe
Hoje surprendi-te quando te olhavas nua
ao espelho
as mãos sobre o púbis segurando a
barriga enorme
Mãe
Às vezes os dias são um pouco
monótonos
de forma que entretive a fazer nós com o
cordão umbilical
Mãe
Estás com umas olheiras enormes
Pelos vistos não te deixei dormir
Passei a noite toda a deambular pelos
recantos mais sinuosos do teu
útero
a ver se descobria alguma água-marinha
Mãe
Podias ter colocado alguns peixinhos no
líquido amniótico
Já agora um beta e alguns escalares
E porque não alguns nenúfares?
Mãe
Apetecia-me uma bebida diferente
que não a minha dose diária de urina
Mãe
Esta noite tive um pesadelo horrível
Sonhei que te tinham cortado os mamilos
com uma lâmina de bisturi
Mãe
Apetecia-me chorar
mas é difícil chorar assim debaixo de água
Mãe
O que está a acontecer?
O teu útero começou a contrair-se
e as contracções vão-se tornando cada
vez mais freqüentes
Mãe
O que é que eu fiz
para me expulsares desta maneira?
Mãe
A distância entre mim e ti
não se mede em centímetros mas em
lilases"


Diário de Bordo, Jorge Sousa Braga